"A MARVEL ACABOU ENTERRANDO O SEU FUTURO"



[MEMÓRIA#17/OURO PURO#5]              * * *                                                      [7/12/2012]

A década de 90 não foi nada fácil para os fãs de quadrinhos: eu era absolutamente tarado por hqs e não devia gostar de 90% do que eu lia. Talvez eu reconhecesse a falta de critérios que me pautava no agir das GRANDES EDITORAS: o controle editorial parecia estar nas mãos de um adolescente bipolar extremamente temperamental -- criativo como um funcionário público segunda-feira de manhã antes do cafezinho.

No entanto, até mesmo um ESPASMO pode virar uma BOA IDEIA – foi o que aconteceu, e com a mesma duração: a linha MARVEL 2099 foi isso. Esse ponto de vista não é único do meu cérebro PÚBERE: aparentemente, também é compartido por José Joaquín Rodríguez, da Bibliópolis, que em alguma data longínqua não especificada dedicou-se a DESTRINCHAR os escassos anos de duração do FUTURO DA MARVEL. Algo que alguém somente poderia fazer por AMOR.

[Não desista; no final do post, tem uma história inédita do Motoqueiro Fantasma 2099 para os PERSISTENTES]

Rodríguez começa explicando brevemente a origem da linha, um estranho enjambramento de ideias de Stan Lee, John Byrne e Jim Shooter, para depois descrever o STATUS QUO INICIAL do universo:

No ano de 2099, os super-heróis eram coisa do passado, igual que hoje são as legiões romanas, os cruzados e os mosqueteiros. Adorados como mitos, a sua lenda tinha se convertido na última esperança à que se agarravam os pobres em um mundo controlado pelas mega-corporações, onde até a segurança pública tinha sido privatizada.

No primeiro ano de aventuras dos heróis do futuro, foram apresentadas as fundações do mundo, com um arquiinimigo intocável: Avatar, o presente da mega-corporação Alchemax. As referências ao misterioso fim dos super-heróis no final do século XX e o desenvolvimento dos personagens conseguiram atrair um público surpreso por essas histórias que misturavam com habilidade algumas convenções do cyberpunk e do gênero super-heroico.

É isso: um negócio cyberpunk anti-corporativista particularmente HERMÉTICO -- não no sentido de inacessível, mas pela COERÊNCIA das equipes criativas envolvidas, destacando-se Peter David [Spiderman 2099] e Warren Ellis [Doom 2099], o que redundou até mesmo em crossovers bacanas, como A Volta dos Deuses [tradução inventada pela Abril para The Fall of the Hammer]...

Depois de enfrentar com sucesso o primeiro ano no comando da linha, Joey Cavalieri, o seu editor, decidiu que era hora de mostrar um evento que unisse todos os heróis desse futuro sinistro. Seguindo a premissa de mostrar temas da ficção científica, o original crossover que os autores idealizaram tratava do tema da religião e da fé de 2099.

No futuro, a lembrança de Thor e dos deuses nórdicos tinha gerado uma nova religião que retomava as crenças nórdicas. Conscientes do poder que essa fé alcançava, as mega-corporações decidiram usar a sua tecnologia para criar novos deuses nórdicos com os que podia manejar a seu favor a crença das massas.
  
...e o não-exatamente-um-crossover Depois de Destino, igualmente bem sucedido e CUNHADO pelo editor Joey Cavalieri:

Até 1995, Cavalieri tinha conseguido o que parecia impossível em outras linhas: manter a grande maioria de seus artistas ligados às suas séries, e não cair na moda comercial de fazer longos crossovers anuais. Assim que os leitores podiam seguir cada série de 2099 com certa independência.

No entanto, a crise da indústria piorou. As vendas diminuíam a cada mês que passava, motivo pelo qual era necessário atrair tanto os leitores que tinham abandonado as séries como outros novos.

Para alcançar esse objetivo, o editor pediu que os diferentes roteiristas apresentassem um plano não só para a série, mas também para todo o 2099. Assim, sem crossovers chatos, Cavalieri pretendia desenvolver um acontecimento que pudesse ser seguido tanto individual quanto coletivamente. O britânico Warren Ellis apresentou uma ideia radical e muito interessante, impossível de ser desenvolvida no Universo Marvel Clássico: Destino conquistaria os EUA, o que provocaria importantes mudanças nas séries.

Sutil, Dr. Destino, MUITO SUTIL.
Assim, depois da conquista da Casa Branca por parte de Destino, as mega-corporações veriam o seu puder ser limitado, os EUA se transformariam em um governo populista, os mutantes teriam reconhecidas algumas de suas pretensões políticas, e o destino de vários personagens variaria de forma drástica.

Aliás, o “populismo” ditatorial do governo do Dr. Destino não deixa de ser um desdobramento interessante: o personagem, escrito por Warren Ellis, chegou, no curso de sua série, a citar Noam Chomsky -- transformá-lo em um ditador populista tem SIGNIFICADOS PERTINENTES que talvez escapem às intenções de Ellis.

De qualquer forma, no final, tudo acabou em caos e a pobreza: a Marvel quebrou, Cavalieri, David e Ellis, principais artífices do sucesso da linha, se mandaram:

Em uma última tentativa de levantar o futuro do Universo Marvel, foi cancelada a série Ghost Rider 2099 e se apresentou uma nova trama na qual a submergida nação de Atlantis declarava guerra ao mundo da superfície. Mas essas mudanças coincidiram com a quebra da Marvel Comics, que resultou na redução do número de funcionários, perdendo Joey Cavalieri o seu emprego. Como protesto, o o roteirista Peter David saiu de Spider-Man 2099. A linha era ferida duplamente de forma mortal.

Depois da chamada Marvelution, nada mais do que um nome original pelo qual se chamar o cancelamento massivo de séries (mais de 40) devido à falta de fundos, todos os títulos do 2099 ficaram trancados em uma única série de 48 páginas e periodicidade mensal, 2099 World of Tomorrow.

Marvelution: foi tipo isso. Só que com
esteroides. E com um Homem de Ferro
adolescente. E um Thor que parecia uma mulher.
...
Eu já falei que nada fazia sentido?
Desenhada de forma medíocre por uma grande quantidade de artistas, com roteiros de Ben Raab e Joe Kelly, recém chegados que nada sabiam sobre o universo futuro, a série foi um fracasso total. Muitos personagens, muitas pontas soltas, muitas mudanças e um afastamento total do cyberpunk.

Um ano depois, Len Kaminski, antigo roteirista de Ghost Rider 2099, acompanhado de um excelente Micke McKone nos desenhos, contaria o final "definitivo" da linha 2099 em Manifest Destiny. De forma rápida, amarrando poucas pontas soltas e com apenas 48 páginas, a Marvel acabou enterrando o seu futuro oficial.

Melancólico? Um dos apêndices do artigo é dedicado apenas para te mostrar todo esse declínio em ESTATÍSTICAS DE VENDA, se você quer saber o que é REALMENTE TRISTE:

Para entender a decadência da linha 2099 e a sua relação com a quebra da Marvel, temos que analisar as vendas. Para isso, vamos dar dois tipos de cifras, as estimativas de vendas globais, realizadas pela própria editora, e os pedidos de Capital City, uma empresa que distribuía os gibis da Marvel nas lojas especializadas, que representava entre 19 e 24% das vendas da Marvel para o período compreendido entre 1992 e 1995.

O nascimento do 2099 esteve acompanhado de vendas excelentes: Ravage, Punisher, Doom venderam um pouco mais de 300.000 exemplares, enquanto que Spider-Man e X-Men devem ter superado esse número, talvez chegando ao meio milhão. Outras coleções posteriores, como 2099 Unlimited ou Ghost Rider, superaram sem problemas os 100.000 exemplares vendidos.

No entanto, no final de 1994, todas as séries sofreram uma queda significativa em suas vendas. X-Men se manteve em torno de 130.000 exemplares e Spider-Man caiu até os 100.000, sem dúvida uma queda brusca, mas não tão grave quanto Ravage, que caiu até os 78.000, ou Doom e Ghost Rider, que dificilmente chegavam a 40.000. Das outras séries, não conhecemos os números globais, mas os pedidos de Capital City foram lenta e progressivamente caindo. A última edição de 2099 World of Tomorrow, que devia vender bem, já que reunia todos os leitores da linha, apenas vendeu 35.000 exemplares, ficando na posição 91 da lista de vendas daquele mês.

Não me sentiria bem em deixar os meus leitores desamparados com esse TRISTE FINAL, então o MEMÓRIA de hoje acaba com um TWIST. Resulta que a epítome do estilo cyberpunk da linha foi Motoqueiro Fantasma 2099. Se tu não acredita em mim, continue acreditando em Rodriguez:

Ghost Rider 2099 (maio 1994) foi uma das séries mais originais do futuro da Marvel, já que se centrava nas aventuras de um herói, o pirata informático Kenshiro "Zero" Cochrane, no ciberespaço. A pesar de não se encontrar no mundo real, podia usar um corpo robótico para interagir com o nosso mundo. Escrita por Len Kaminski e desenhada por Chris Bachalo e Mark Buckingham, essas aventuras resultaram ser as mais influenciadas pelo cyberpunk.

Pois bem: resulta que, PARA NOSSA ALEGRIA, o desenhista Salgood Sam liberou, no início do mês passado, uma história curta que desenhou para o personagem à época, escrita por Warren Ellis e nunca publicada, páginas mais do que suficientes para dar CREDIBILIDADE à tese de Rodriguez. A postagem original da história é de Rich Johnson, do Bleeding Cool. É o que você aí em baixo, a título de EPITÁFIO para o MEMÓRIA de hoje:


















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